Sandra Maia Farias Vasconcelos
Universidade Estadual do Ceará
Introdução
O hospital é por natureza um lugar que causa temor, por ser o encontro da vida com a morte. De extrema abertura nos antigos tempos, aos mais rigorosos e fechados ambientes de há pouco, o hospital passa hoje por um processo de abertura no que concerne ao tratamento humanizado aos pacientes. Segundo BERTHET (1983), a saúde comporta três noções essenciais:
1) a saúde é o equilíbrio e a harmonia de todas as possibilidades da pessoa humana, biológicas, psicológicas e sociais. O que exige por um lado, a satisfação das necessidades do homem e por outro lado o questionamento da adaptação constante do homem a um ambiente em perpétua mutação.
2) a saúde no plano individual é a plenitude de vida, o equilíbrio qualitativo, a harmonia total da pessoa humana, com o objetivo de enriquecer cada um de seus dons, ou seja, cada ser humano busca encontrar em sua existência o meio de desenvolver todas as suas possibilidades. À noção de saúde individual devem ser somadas às de saúde familiar e de saúde comunitária.
3) a saúde supõe a existência de uma força potencial de reserva que permite ao organismo de resistir aos choques físicos e psíquicos quotidianos. Essa força potencial que podemos chamar resiliência é em parte devida a nossa herança genética, e em parte adquirida ao longo da vida pela aplicação de regras elementares de uma vida sadia.
Graças à humanização, aceita-se com facilidade hoje a necessidade de incluírem-se outros profissionais além do corpo médico no meio hospitalar, transformando-o em um contexto afetivo, e de reintroduzir a emoção no funcionamento cognitivo.
A afetividade é uma dimensão de nosso pensamento tão essencial quanto o pensamento. Os médicos costumam dizer que quando o corpo cala, os órgãos falam. A afetividade nos constitui, ela se identifica com nosso próprio pensar e nos identifica como pessoas. Amores, paixões, gostos, interesses, rejeições, repulsas, ódios e rancores, tudo isso forma o ser humano e dele é inseparável. Não há distância entre o homem e seus sentimentos.
O hospital infantil é por excelência um ambiente carregado de emoções. A doença exclui a criança de seu ambiente, imobilizando-a social e intelectualmente. Junto ao fato de estar excluída de seu ambiente, de estar doente e ser diferente de seus colegas de escola, aparece com freqüência uma queda da auto-estima. A criança atingida por doença de tratamento em longo prazo, vê-se inconcebível e contrária à vida: talvez daí derive o silêncio em que freqüentemente se afunda. O diagnóstico de uma doença grave ou a chegada de uma situação diferente e excluidora, compromete o desenvolvimento psico-intelectual da criança por provocar sensações de confusão entre as noções de continuidade, de ruptura e de plenitude (Snyders,1986)[1].
Essas crianças sofrem pela doença, pelo distanciamento do ambiente familiar e dos amigos, e de seu ambiente social, a escola. A intervenção pedagógica já é uma realidade no ambiente hospitalar, graças à iniciativa de grupos voluntários e algumas instituições e universidades preocupadas com o afastamento da escola sofrido por crianças e adolescentes enfermos hospitalizados. Em alguns casos de doenças graves, esses jovens passam meses, quem sabe anos, sem freqüentar a escola, longe do processo de escolarização. Assim o jovem abandona a escola e a escola abandona o jovem.
A classe hospitalar busca recuperar a socialização da criança por um processo de inclusão, dando continuidade a sua aprendizagem. A inclusão social será o resultado do processo educativo e reeducativo. A escola é um fator externo à patologia, logo, é um vínculo que a criança mantém com seu mundo exterior. Se a escola deve ser promotora da saúde, o hospital pode ser mantenedor da escolarização. E escolarização indica criação de hábitos, respeito à rotina; fatores que estimulam a auto-estima e o desenvolvimento da criança e do adolescente.
O distanciamento do processo de escolarização repercute fortemente no processo de socialização, pois a perda de contato da criança ou adolescente com seus colegas é imediata. Outro fator preponderante na perda de escolarização vem da própria doença, acarretadora de grande sofrimento, e ainda promovedora do grande dilema do preconceito. As escolas para crianças e adolescentes não informam seus alunos sobre doenças, e logo que um colega é acometido de uma enfermidade grave, os pares não estão preparados para prover um apoio. Não raro acontece o pior: o afastamento dos colegas sadios e o isolamento do colega doente.
Muitos pais de crianças sadias se sentem incomodados com o contato do filho com um colega atingido por câncer ou Aids, por exemplo. A deficiência física e mental também é um obstáculo para muitas famílias sadias. Na maior parte das vezes, segundo depoimentos de professores hospitalares, esse preconceito se deve à desinformação dos pais.
O principal objetivo da classe hospitalar é, assim, fazer um acompanhamento pedagógico a crianças e jovens com dificuldades graves de saúde física ou mental e que estão definitiva ou temporariamente impedidos de freqüentar a escola regular.
Não se trata de Educação Especial. É a Educação Escolar ordinária, aquela que nutre o sujeito de informações sobre o mundo dentro do currículo escolar definido pela educação nacional. Marca-se como diferença entre a classe hospitalar e a classe especial o fato de que a segregação das crianças não se deve à rejeição por outras classes, mas à doença que as impede de ir à escola. Longe de rejeitá-los, a escola vai até eles, no hospital.
A Classe Hospitalar tem seu início em 1935, quando Henri Sellier inaugura a primeira escola para crianças inadaptadas, nos arredores de Paris. Seu exemplo foi seguido na Alemanha, em toda a França, na Europa e nos Estados Unidos, com o objetivo de suprir as dificuldades escolares de crianças tuberculosas. Pode-se considerar como marco decisório das escolas em hospital a Segunda Guerra Mundial. O grande número de crianças e adolescentes atingidos, mutilados e impossibilitados de ir à escola, fez criar um engajamento sobretudo dos médicos, que hoje são defensores da escola em seu serviço.
Em 1939 é Criado o C.N.E.F.E.I. – Centro Nacional de Estudos e de Formação para a Infância Inadaptada de Suresnes, tendo como objetivo formação de professores para o trabalho em institutos especiais e em hospitais. Em 1939 é criado o Cargo de Professor Hospitalar junto ao Ministério da Educação na França.
O C.N.E.F.E.I. tem como missão até hoje mostrar que a escola não é um espaço fechado. O centro promove estágios em regime de internato dirigido a professores e diretores de escolas; a médicos de saúde escolar e a assistentes sociais.
Dentre os objetivos da Classe Hospitalar está a possibilidade de compensar faltas e devolver um pouco de normalidade à maneira de viver da criança. O professor hospitalar será o tutor global da criança para que ela possa ser tratada de seu problema de doença, sem esquecer as necessidades pessoais. A intervenção faz com que a criança mantenha rastros que a ajudem a recuperar seu caminho e garantir o reconhecimento de sua identidade.
O contato com sua escolarização faz do hospital uma agência educacional para a criança hospitalizada desenvolver atividades que a ajudem a construir um percurso cognitivo, emocional e social para manter uma ligação com a vida familiar e a realidade no hospital.
Em termos de estratégias de crescimento cognitivo e intelectual, a Classe Hospitalar vem oferecer à criança ferramentas de comunicação com sua realidade familiar, com outras pessoas de sua idade e com outros pacientes; oferecer situações de jogos e entretenimentos; garantir a continuidade didática com a escola de origem além de ajudar a criança e a família a apreender os novos ritmos e os novos projetos, quando o projeto de antes tornou-se impossível.
A Formação de Professores para atendimento escolar hospitalar no CNEFEI tem duração de dois anos. Desde 1939, o C.N.E.F.E.I. ja formou 1.000 professores para as classes hospitalares, cerca de 30 professores a cada turma. A cada ano ingressam 15 novos professores no Centro. Isso faz com que hoje todos os hospitais públicos na França têm em seu quadro 4 professores: dois de ensino fundamental e dois de ensino médio. Cada dupla trabalha em expedientes diferentes, de segunda a sexta.
No Brasil, a legislação reconheceu por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente Hospitalizado, através da Resolução nº 41 de outubro de 1995, no item 9, o “Direito de desfrutar de alguma forma de recreação, programas de educação para a saúde, acompanhamento do currículo escolar durante sua permanência hospitalar”.
Em 2002 o Ministério da Educação, por meio de sua Secretaria de Educação Especial, elaborou um documento de estratégias e orientações para o atendimento nas classes hospitalares, assegurando o acesso à educação básica.
De acordo com esse documento, a educação tem potência para reconstituir a integralidade e a humanização nas práticas de atenção à saúde; para efetivar e defender a autodeterminação das crianças diante do cuidado; para propor um outro tipo de acolhimento das famílias nos hospitais, inserindo a sua participação como uma interação de aposta no crescimento das crianças; para entabular uma educação do olhar e da escuta na equipe de saúde mais significativa à afirmação da vida.
A classe hospitalar constitui uma necessidade para o hospital. A criação de classes hospitalares é uma questão social e deve ser vista com a mesma seriedade e o mesmo engajamento que a promoção da segurança nas ruas. A classe hospitalar se dirige às crianças, mas deve se estender às famílias, sobretudo àquelas que não acham pertinente falar sobre doenças com seus filhos. A intenção grandiosa nesse projeto deve ser a humanização do hospital para o contato com as possibilidades da criança vítima de algum tipo de patologia.
O professor hospitalar deve ter a consciência dos monstros viventes na mente das crianças: o medo, o controle, a mudança e a incerteza. No hospital, tudo é incerteza para a criança: tiram-lhe as roupas, ela se vê igual às outras, sua mãe acompanhante se torna igual às outras mães, a criança ignora o que vai fazer, comer, quem vai vê-la etc.
Portanto, consciente dessa nova situação, a intervenção escolar deve se tornar parte dessa rotina, com muita ética. E ser ético é ser humano, é respeitar limites, é resgatar o lado saudável da criança, é dar-lhe singularidade.
O interventor pedagógico deve ser um oportunizador da aprendizagem que, longe das paredes da escola, forma escola no momento do contato.
O número de classes hospitalares no Brasil é ainda tímido se considerarmos a imensidão do país; mas já é um começo bastante otimista.
A classe hospitalar é um direito de toda criança, mas a experiência pode se estender a adultos e à terceira idade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário